A regra do jogo

A batalha para o segundo turno já começou e a militância de esquerda está colocando todo o seu empenho para convencer os indecisos e garantir a vitória do Lula. A luta é essencial e não é hora de desanimar. No entanto, é preciso também ficar atento ao que acontece por fora dos palanques e debates políticos, para não correr o risco de uma imensa frustração no dia D.

Eu tenho recebido entre 400 e 500 mensagens por dia, via grupos virtuais e listas de transmissão, querendo me convencer que B*# é corrupto, fascista, homofóbico, machista, anticristo, preconceituoso, anti-ambientalista, anti-indígena, enfim, podre de hipocrisia e maldade. Caso alguém duvide, eu JÁ estou convencide disso desde a primeira vez em que ouvi falar nele, em 2014. Por outro lado, ME PARECE que quem não conseguiu se convencer até agora, dificilmente vai ter um brilho de lucidez, assim, milagroso, ao receber o 29 874° vídeo do whatsapp que repete a mesmíssima coisa.

Algo me diz que alguns determinantes eleitorais fogem do campo racional.

Pega Manaus, por exemplo. Lá, onde faltou oxigênio no auge da pandemia, B*# sai na frente do Lula no primeiro turno. Quem quiser explicar para o povo de lá que ele foi um péssimo gestor do sistema de saúde, tudo bem, mas nesta altura, não sei se adianta muito…

Então, vamos trocar disco? Vamos tentar entender – e encarar – o que realmente está acontecendo no país para ele estar surfando assim no processo eleitoral, zombando todas as pesquisas de opinião? Porque eu não acho que o Brasil tenha mais de 50 milhões de fascistas declarados. Nem perto disso. Não acho que “votar no” B*# – no sentido de apertar um número na urna – seja sinônimo de “apoiar” o B*# ou de concordar com ele. Em outras palavras, acho que precisamos de falar sério sobre boca de urna, compra de voto, pressão hierárquica e recompensas ilícitas que instigam uma multidão de “indecisos”.

[“Indecisos”: assim é chamada a imensa parcela da população que não está nem aí com isso tudo, e que não entende e nem procura entender esses números, partidos e cargos de um jogo institucional que sempre pertenceu a uma elite colonial e branca.]

É só olhar de perto a apuração de deputados federais e estaduais em qualquer estado do Brasil: quantos 2222 e 22222 eleitos?! Sim, no Nordeste também! Quantos desconhecidos, sem experiência política nem grande notoriedade, juntando 50 000 votos? Sério, isso? Quem já participou de alguma campanha política, dentro dos limites da legalidade e do empenho humano, sabe do quanto é trabalhoso levar a cabo uma candidatura numa eleição. Com certeza, não é bem assim, sair em primeiro lugar das votações, muitas vezes sem entregar um panfleto sequer. Sabemos que as igrejas evangélicas têm um peso considerável na disputa, mas elas não beneficiam da mesma hegemonia em todo o território. Outros fatores interferem.

Outro exemplo gritante: o Centro-Oeste. A gente vive se conformando com a ideia de que a região é de (extrema) direita porque é terra do agronegócio. Tudo bem… Mas peraí… Isso é, no mínimo, uma informação troncada! Pois a principal característica do agronegócio justamente de concentrar riqueza e poder nas mãos de pouca gente. Ou seja: quem ganha com esse sistema jamais teria coro suficiente para eleger um deputado! Então se a bancada ruralista brota que nem soja nesses lugares, é porque o resto da população vota contra si mesma… Só vejo três explicações para isso: pressão empresarial (“Se não votar no Fulano, você vai ser demitido”), desinformação ou dinheiro vivo.

Sei que não é a primeira eleição em que esses métodos são aplicados. Mas o que me impressiona é a proporção que se atingiu agora. Preciso dizer também que não estou apenas compartilhando um “achismo” meu aqui. Me dei a pena de indagar amigues vindo de diversos cantos do Brasil, e de fora da bolha branca-classemédia-esquerdista-sulista da qual eu faço parte. E confesso que foi um choque me deparar com o tom de obviedade e resignação das respostas que eu recebi. Não tem nada de muito novo, mesmo.

“Em 2020, uma semana antes das eleições, a atual Prefeita visitava as casas e assinava cheques de até R$ 1000.”
“A minha própria família vendia o voto, quando eu era criança. Era 50, 100 reais… pagava o gás!”
“Eu mesmo fui solicitado por um candidato, agora, para sair comprando voto para ele.”
“Eu faço assim, pego o dinheiro, mas voto no Lula!”

As denúncias específicas de compra de voto são raras na imprensa, mas a Amazônia Real relatou alguns casos gravíssimos semana passada. Mas os escândalos que ultrapassam os limites da legalidade não faltam. Em qual democracia se aceita a atitude de empresários coagindo seus funcionários a votarem num candidato, ou ameaçando de fechar as portas se o opositor for eleito? Em qual planeta vive o gerente de mercado que, na véspera da eleição, anuncia 60% de desconto na carne mais cara para quem for votar no Fulano?

O que me preocupa com tudo isso – e eis o motivo deste texto – é que a esquerda está defendendo desde o início a ideia de que as eleições são regulares e que o resultado tem que ser aceito. Isso para combater o golpe prometido por B*#. No entanto, não podemos fingir que está tudo bem quando sabemos que as eleições estão sendo compradas.

Não acho que tenha que mudar o discurso. As eleições vão ocorrer do jeito que for, e teremos que comprar essa briga até o fim. Agora, vale juntar todas as forças para fazer com que o processo democrático aconteça de maneira mais sadia no segundo turno. Talvez gastar menos energia em produzir novos materiais sobre tudo o que já foi dito, e abrir um debate sem tabu sobre esses assuntos na militância e na mídia. Não que tenha muito para se “debater” além de expôr os casos, mas me parece que se fazer de louco neste contexto seria deixar o campo livre para quem quer jogar sujo. Temos que mostrar que estamos cientes do que está acontecendo e que não ficaremos calades. Segunda medida que me parece fundamental é IR PRA RUA (em grupo, de vermelho, etc.) no dia das eleições, e marcar presença nos arredores dos locais de votação. Dependendo do contexto, vale estar com celular na mão para tirar foto, se acontecer alguma coisa, mas a simples fato de estar ali já tem seu efeito. Até para não deixar a bandeira verde amarela reinar sozinha na fila das urnas, como aconteceu em vários lugares.

São algumas sugestões da minha cabeça indignada mas convido quem quiser a fazer as suas. Tenho por mim que, no campo da argumentação política, já fizemos quase tudo o que se podia. O que nos levou para um segundo turno – e entregou a Câmara e o Senado na mão dos piores – foram esses golpes abaixo da cintura. E é isso que temos que enfrentar agora.

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