O (in)aceitável

Estávamos saindo do teatro, ainda impactadas com a peça que acabávamos de assistir, e caminhando em direção ao palco principal.

Preciso contextualizar: a cena – real – que vou contar aconteceu 4 semanas atrás, no Festival de Inverno de Garanhuns, em Pernambuco. Era o último dos 17 dias de música e cultura, circulando em oito palcos do centro da cidade. A programação – totalmente gratuita – mal cabia num caderno de 16 páginas em formato A3, e oferecia uma imensa diversidade de apresentações, desde grupos de cultura popular até artistas famosos de todo o Brasil. Simplesmente incrível.

Aquela noite vinha então encerrar a maratona. Deviam ser umas 22 horas quando chegamos no portão do palco principal, seguindo o fluxo de dezenas de pessoas. Uma moça (branca) na minha frente parou de repente. – Tudo bem? – eu perguntei.
– Eles revistam na entrada, né?
– Geralmente é bem rápido, dão uma olhada na mochila e perguntam se tu não tem garrafa de vidro…
– Depende… É que tô com negócio aqui…
Ela puxou um saquinho de maconha e enfiou-o dentro da calcinha.
Na entrada, percebemos imediatamente que entre as duas seguranças mulheres, uma estava muito mais empenhada na tarefa. Fui direto nela, deixando a menina passar ligeiro com a outra. Tudo certo. Agradeceu com um olhar e sumiu.

Com os amigues que me acompanhavam, conseguimos nos enfiar no meio do povo para chegar mais perto do palco e assistir o final do show que estava rolando. Vale dizer que praticamente todxs xs artistas que subiram nos palcos do festival fugiram da neutralidade política e se posicionaram de maneira explícita a favor da democracia, da diversidade, da justiça social, enfim, pedindo para não vacilar quando outubro chegar.

No intervalo entre duas bandas, o meu grupo foi se dispersando mas eu fiquei por ali, no miolo da plateia. Foi naquele momento que me deparei com uma cena que ninguém perto de mim parecia enxergar. Uma meia dúzia de policiais – que até então, tinham ficado bem quietinhos nas beiradas – estavam no meio da multidão, revistando de maneira arbitrária e truculenta cinco jovens negros, fuçando nos bolsos e olhando até o fundo dos seus tênis. Tudo isso na indiferença geral das centenas de pessoas que estariam testemunhando a cena se não tivessem casualmente o rosto virado para o lado oposto. Aposto sem medo que mais da metade delas estava com alguma substância ilícita no sangue ou no bolso.

No fim, um dos meninos foi levado. Nunca vou esquecer o olhar desamparado dos quatro outros, de braços caídos, sozinhos no meio do nada.

Eu resolvi ir embora – já não tinha mais ânimo para festa. Saí caminhando numa direção qualquer. Não sou ruim de orientação, mas a noite era escura, de lua nova, e a cidade ainda me era estranha. Me perdi. Fui parar num daqueles bairros residenciais de classe alta, onde os prédios são cingidos por muros de três metros de altura, com portões blindados e guarda 24 horas. Nas calçadas cinzas, as árvores são alinhadas à perfeição e suas copas quadradas como num desenho distópico. Não há nenhum ser humano a vista. Essa gente não anda a pé.

Eu mesma não tinha muito o que fazer por ali. Era melhor voltar para centro da cidade, de onde eu sabia o caminho de casa. Passei na frente de uma delegacia.

Naquele exato momento, saíram dois policiais conduzindo um casal de jovens negros, mãos algemadas nas cosas, até um carro. Abriram o porta-malas. Na hora, estranhei, porque não tinha mala nenhuma para colocar lá dentro. Apenas pessoas. Pois, eles colocaram as pessoas – negras, magras, jovens, desarmadas, algemadas – no porta-malas do carro.
Fecharam, subiram na frente, ligaram o carro e saíram para não sei onde.

Eu queria ter filmado isso, obviamente. Não tenho essa manha de estar sempre com celular à mão, pronto para disparar. Sem imagem ilustrativa, me restou apenas compartilhar esse relato por escrito, como (mais uma) triste crônica de tudo o que a gente banaliza, esconde, ignora ao nosso redor. Me perguntando como e quando, finalmente, a injustiça se tornará inaceitável.

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